sexta-feira, 19 de março de 2010

Os nativos de Paranampuka - Uma análise sobre as etnias do Estado

Quando, em 1500, o português Pedro Álvares Cabral aportou na Bahia, praticamente todo o litoral brasileiro estava ocupado por tribos do grupo Tupi-guarani. Havia meio século, Tupinambás e Tupiniquins tinham assegurado a posse da costa, expulsando para o interior as tribos por eles consideradas "bárbaras", chamadas Tapuias. Entre a foz do Rio Paraíba e a Ilha de Itamaracá, compreendendo os atuais Litorais Sul da Paraíba e Norte de Pernambuco, viviam os Tabajaras, em número de 40 mil, os quais se aliaram aos portugueses. Já os Caetés, mais ou menos 75 mil indivíduos, povoavam a faixa de terra entre a Ilha de Itamaracá e as margens do São Francisco, no Litoral Sul pernambucano e em todo o alagoano. Deglutidores do Bispo Sardinha, foram considerados "inimigos da civilização" e exterminados (ver tópico abaixo). Apesar do grande genocídio em que se traduziu a colonização como um todo, aproximadamente 25 mil remanescentes dos primitivos habitantes de Paranampuka, que em tupi significa "o mar que bate nas pedras", ainda habitam o Estado, espalhando-se pelo interior e constituindo a 4ª maior população indígena do país, atrás apenas das do Amazonas, do Mato Grosso e do Pará.

O triste fim do Bispo Sardinha

De todos os "costumes bárbaros" que possuíam os nativos de Pindorama, nenhum se revelou mais espantoso e odioso aos olhares europeus que o canibalismo. Na Capitania de Pernambuco, o assunto veio à tona de maneira impactante. Em 1556, a caravela que transportava para a Metrópole o 1º Bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, naufragou no atual Litoral Sul alagoano, e, após mil peripécias, os cerca de 100 sobreviventes - crianças, adultos e idosos - que alcançaram a praia foram mortos e devorados pelos Caetés, que os aguardavam ansiosos. Apenas 1 português e 2 indígenas que compreendiam o idioma dos nativos conseguiram escapar. O Bispo foi, por assim dizer, o "prato principal" do banquete antropofágico, com sua carne trucidada sendo servida como uma especialidade. Curiosamente, consta que, desde então, o terreno no qual caíra o alto prelado da Igreja tornou-se estéril. A carnificina resultou na violenta perseguição aos Caetés, tradicionais aliados dos franceses e inimigos ferrenhos dos lusitanos, e em sua exterminação no intervalo de 5 anos.

Até hoje, todavia, não há consenso sobre o assunto. Para alguns, a animosidade dos Caetés em relação aos portugueses era notória desde a destruição de sua aldeia Marim pelo donatário Duarte Coelho em 1535, lugar no qual viria a ser fundada Olinda. Empurrados para o Cabo de Santo Agostinho e, dali, cada vez mais para o sul, envolveram-se em inúmeras batalhas com os colonizadores lusos. Há quem defenda, porém, que a atribuição da carnificina aos Caetés foi uma farsa promovida pelos 3 sobreviventes de modo a motivar a perseguição à tribo, senhora das valiosas terras que posteriormente serviriam tão bem à próspera empresa açucareira nordestina. Assim, a autoria da tragédia envolvendo o Bispo recairia sobre os Tupinambás, tradicionais habitantes das terras para além da foz do Velho Chico. O fato é que o episódio chamou a atenção do Velho Mundo para o fenômeno da antropofagia, que tinha a vingança como principal objetivo e era praticada por quase todos os Tupi e Tapuia, com requintes tétricos que disseminaram espanto e horror entre os europeus.

As missões em Pernambuco e a tensão em Cimbres

A análise da História Municipal pernambucana revela que a colonização portuguesa do interior do Estado se deu em duas frentes simultâneas, porém com maneiras de agir distintas. A primeira delas consistiu na expansão dos currais de gado ao longo do Rio São Francisco, de modo a fornecer os animais necessários ao trapiche dos engenhos de açúcar da região, bem como o leite, a carne e o couro que servia de alimento e indumentária à população. Tal empresa foi levada a cabo pelos prepostos e escravos da elite branca e sua atitude em relação aos silvícolas resumiu-se à preação e ao extermínio. Em sentido contrário, foram empreendidas pelos religiosos católicos, em particular pelos da Congregação de São Felipe Néri, presente em Pernambuco desde 1660, missões voltadas à catequese dos nativos, até a principal Ordem missionária (a dos Jesuítas) ser banida em 1759 pelo Marquês de Pombal. De todas as missões estabelecidas pelos frades oratorianos, ao redor das quais se organizariam núcleos urbanos como os de Brejo da Madre de Deus, Limoreiro e Tacaratu, a mais importante foi a Missão do Ararobá, na Serra homônima e voltada à assistência dos índios Xucurus.

A nação Tapuia mais importante do interior do Nordeste era a Cariri, que contava com 22 grandes tribos na região e cerca de 20 mil indivíduos. Suas principais ramificações em Pernambuco eram os Xucurus, na Serra do Ararobá (Pesqueira), os Garanhuns, na Serra homônima, os Carnijós ou Fulni-ôs, no vale do Rio Ipanema (Águas Belas), e os Pankararus, na Serra de Tacaratu. Em volta da capela de Nossa Senhora das Montanhas (1669), fundada pelos oratorianos na Serra do Ararobá, surgiu a povoação de Monte Alegre, futura Vila Real de Cimbres (1762). Cimbres foi um lugar de ensino direcionado aos índios durante mais ou menos dois séculos, contando, inclusive com o famoso "Colégio dos Índios do Ararobá", estabelecimento de ensino profissional. Com o decorrer dos anos, todavia, a outrora garbosa povoação foi entrando em declínio e viu a liderança regional passar à vizinha Pesqueira, localizada no sopé da Serra e, portanto, muito mais acessível. Em 1813, interrompeu-se a assistência aos cerca de 245 xucurus que viviam na Vila, já considerada muito pobre para seguir alimentando-os, e remontam daí os principais conflitos com a tribo, ainda hoje motivo de instabilidade na região.

Em 1879 foi declarado extinto o aldeamento de Cimbres, cessando a tutela governamental sobre os índios, e suas terras foram entregues à Câmara para redistribuição a título de venda ou cessão a terceiros. Em retaliação, os nativos começaram a atritar-se com aqueles que promoveram o esbulho de seus domínios. Num lugar que se orgulha de haver surgido voltando-se à proteção dos silvícolas, persiste a vergonhosa situação de a demarcação das terras daqueles nunca haver sido efetuada. Tal demarcação vem sendo sistematicamente pleiteada desde 1980, bem como violentamente repreendida pelos cerca de 280 fazendeiros da região, havendo resultado em quase 30 mortes, dentre as quais a do famoso Cacique Chicão. A guerra local certamente não preocuparia tanta gente não houvesse sido a adormecida Cimbres o lugar de aparição de Nossa Senhora em 1936, um dos únicos 5 no mundo reconhecidos pelo Vaticano, razão pela qual muitos fiéis para lá se dirigem. A crise é tamanha que, prevendo os problemas com a tribo, a Prefeitura de Pesqueira criou uma pequena réplica do Santuário ainda no sopé da Serra, de modo a satisfazer os visitantes e evitar os possíveis problemas da aproximação com a ressentida etnia.

As etnias remanescentes

Hoje em dia, existem legalmente em Pernambuco 7 grupos indígenas, apesar de serem 10 as etnias remanescentes dos Cariris. As 7 são os Xucurus (Pesqueira), os Fulni-ôs (Águas Belas), os Kapinawás (Buíque), os Pankararus (Petrolândia e Tacaratu), os Kambiwás (Ibimirim, Inajá e Floresta), os Atikuns (Carnaubeira da Penha) e os Trukás (Cabrobó). As outras 3 são os Tuxás (Inajá), os Pankarás (Itacuruba) e os Pipipãs (Floresta). Após anos de contato e de miscigenação com o homem branco e negro, num longo processo de aculturação, as tribos se descaracterizaram, mas traços de sua cultura foram precariamente preservados e em seus membros persiste o sentimento de identidade indígena. As tradicionais figuras do cacique e do pajé ainda sobrevivem, bem como o toré é dançado em todos os grupos. Apenas os Fulni-ô, todavia, conservaram o idioma tribal. A maioria vive da agricultura de subsistência e do rico artesanato, exposto no Museu do Índio do Nordeste (MINNE), em Arcoverde (centro geográfico das etnias do Estado), o 2º mais importante do gênero no país, bem como no Museu do Homem do Nordeste da FUNDAJ.

As duas maiores etnias são a dos Xucurus e a dos Pankararus, com cerca de 3.500 indivíduos cada. Alvo das missões ao tempo da Colônia, professam a fé católica e vivenciam eventos religiosos, como a Festa de Nossa Senhora das Montanhas (Xucurus). É nessas oportunidades, porém, que manifestam suas tradições. Os Pankararus também celebram sua cultura nas reservadas festas do Menino do Rancho e do Flechamento do Umbu. Os Kapinawás, por sua vez, habitam o Parque Nacional do Vale do Catimbau, repleto de lendas e de misticismo. A etnia mais interessante, todavia, é a dos Fulni-ôs. É que eles são os únicos do Nordeste que mantêm viva sua língua, o yathê, transmitida oralmente e por intermédio de uma escola bilíngue que há na reserva. Além da aldeia, a comunidade possui um outro local de moradia, no qual passa os 3 meses do ano em que ocorrem os misteriosos rituais do Ouricuri, espécie de retiro relioso. Além do toré, dançam a cafurna e o côco de roda e possuem um Centro Fitoterápico de Reprodução de Mudas e Essências Medicinais, mantido com o apoio da Fundação Nacional da Saúde e da UNESCO e no qual são cultivadas várias plantas que servem à medicina natural.

A toponímia legada pelos silvícolas

Volta e meia os pernambucanos se deparam com vocábulos de origem indígena, tanto tupi-guarani quanto tapuia-cariri. O imenso legado dos primeiros povoadores do Estado em que "o mar bate nas pedras", possivelmente nos arrecifes que batizaram a Capital, faz-se sentir, por exemplo, nas denominações de acidentes geográficos e de Municípios. Assim é que Araripe significa "serra das cabeceiras", Beberibe "rio das raias", Borborema "região desabitada", Cabrobó "guerra", Capibaribe "rio das capivaras", Caruaru "rio das caruaras, moléstia que ataca o gado", Exu "abelha que faz ninho rugoso", Garanhuns "os pássaros pretos", Goiana "porto do vale", Gravatá "caroá rijo", Guararapes "nos tambores", Itamaracá "pedra que canta", Igarassu "canoa grande", Ipojuca "rio de águas pútridas", Jaboatão "mão firme como a do jaguar", Ouricuri "árvore que dá vários cachos", Pajeú "rio do feiticeiro", Suape "caminho da caça", Sirinhaém "bacia de siris", Tacaratu "furna não muito profunda" e Tamandaré "que se assemelha ao tamanduá".

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