domingo, 14 de março de 2010

Antes mesmo de Paranampuka - Notas sobre a Pré-história pernambucana

Apesar do árduo trabalho levado a cabo pelos arqueólogos, em especial da UFPE, da UNICAP e da UNIVASF em Pernambuco, um abismo de incompreensão ainda turva o que se sabe sobre período pré-duartino, isto é, anterior à chegada do donatário Duarte Coelho para tomar posse de sua Capitania, em 1535. A própria origem de nossos mais remotos ancestrais ainda não pôde ser satisfatoriamente esclarecida, com a tradicional teoria sobre a migração glacial via Estreito de Behring, há cerca de 12 mil anos, caindo por terra ante os novos indícios, encontrados pela pesquisadora Niède Guidon na Toca do Boqueirão (Serra da Capivara, Piauí), de que os paleoíndios possam ter aqui chegado há pelo menos 50 mil anos pela via marítima, após cruzarem o Pacífico. A datação das cinzas desenterradas em São Raimundo Nonato, mediante a inquestionável técnica do carbono 14, atribuiu-lhes 48 mil anos de idade, mas sobre elas paira a tese de que, ao invés de reportarem a fogueiras feitas por caçadores primitivos, correspondem a resquícios de queimadas naturais.

Tesouros de giz na Chapada do Araripe

O palco geológico de maior destaque no Estado é a Chapada do Araripe, com 8 mil km² de superfície e uma altitude média de 600m na divisa com o Ceará, consistindo em um dos principais sítios do Período Cretáceo do mundo. A região é especial pelos achados geológicos e paleontológicos desde os primeiros anos do Século XIX, com registros entre 110 e 70 milhões de anos, em excepcional estado de preservação e diversidade. No Araripe está mais de um terço de todos os registros de pterossauros descritos no mundo, mais de 20 ordens diferentes de insetos e a única notação da interação inseto-planta. Há similares destas mesmas espécies na África, vestígio de quando os continentes foram um só, formando a primaz Gondwanna (cerca de 36% do território brasileiro é constituído por marciços antigos que fizeram parte do supercontinente). Os fósseis da "Formação de Santana", um dos setores geológicos da Bacia do Araripe mais ricos em vestígios de peixes, evidenciam a época em que o Sertão era um imenso mar continental, entre 112 e 99 milhões de anos atrás.

Ao lado de muitos outros documentos fósseis, os do Araripe, em especial os de Santana, dão uma contribuição importante à Teoria da Evolução de Darwin sobre o ritmo dos acontecimentos na evolução biológica, hoje em estreita sintonia com a pesquisa genética mais avançada. Assim, curiosamente põem em xeque o Criacionismo numa região fortemente marcada pelas demonstrações de fé católica concentradas da figura do Padre Cícero do Juazeiro. Nos diversos sedimentos da Formação são encontrados vestígios de peixes, crustáceos, tartarugas, rãs, insetos, sáurios da terra e do ar, únicos no mundo inteiro, bem como maravilhosas plantas. A conservação de partes moles, como a pele de vôo de sáurios e seu conteúdo estomacal, não encontra paralelo. Além dos sedimentos do Cretáceo, também existem depósitos jurássicos mais antigos, como troncos fossilizados de árvores. Há ainda sítios arqueológicos que atestam uma ocupação humana do período neolítico (utensílios de pedra, cerâmica, pinturas rupestres, já com 5 a 7 mil anos).

A região, Pólo Gesseiro do Estado, respondendo por 95% da produção de gipsita no país, abriga atualmente o único geopark das Américas, o Geopark Araripe, aprovado e oficializado pela UNESCO em 2006 e formado por uma rede de 9 parques de proteção e preservação de registros geológicos, paleontológicos e paisagens naturais. Lá também está o excelente Museu de Palentologia da URCA, em Santana do Cariri (CE). A criação do Geopark e do Museu, bem como a atuação preventiva e repressiva da Polícia Federal, ajudou a inibir o contrabando internacional de fósseis nesta que é a maior reserva brasileira do tipo. Os “peixeiros”, como são conhecidos aqueles que exploram e comercializam clandestinamente os vestígios, a preços entre R$ 40 e 1.000 por peça, vendem-nos a atravessadores que os distribuem ao Primeiro Mundo, razão pela qual apenas 40% dos restos arqueológicos descobertos na Chapada permanecem no Brasil. Muitos deles estão em museus europeus e são reivindicados pelo Governo Federal.

Pré-história e misticismo no Vale do Catimbau

Controvérsias à parte, o certo é que há mais ou menos 12 mil anos, durante a transição entre os períodos Pleistoceno e Holoceno, boa parte do território brasileiro já estava ocupado por grupos de caçadores e coletores pré-históricos. Tais grupos são divididos pelos arqueólogos em tradições, estabelecidas de acordo com os resquícios de sua cultura material. À tradição Nordeste pertenciam aqueles que possuíam indústria lítica refinada e faziam belas pinturas rupestres. Há mais ou menos 7 mil anos atrás, esse grupo foi substituído pelas tribos da tradição Agreste, que não dominava as artes, exceto a da guerra. É a esse período de transição que remonta a presença humana mais antiga de que se tem notícia no Parque Nacional do Vale do Catimbau, o 2º maior parque arqueológico do Brasil, perdendo apenas para a Serra da Capivara, no Piauí. Em 1970 foi descoberto um esqueleto datando 6.800 anos em um abrigo utilizado como cemitério pré-histórico, atualmente em exposição no Museu Municipal de Buíque.

Com uma superfície de 90 mil ha, o Vale do Catimbau estende-se entre os Municípios de Buíque, Ibimirim, Inajá e Tupanatinga, fazendo fronteira com a reserva indígena federal Kapinawá, localizada na serra da Mina e onde vivem cerca de 400 índios. Primeiro Parque Nacional terrestre de Pernambuco e uma das oito unidades federais de conservação que preservam o bioma da Caatinga, é cortado por dezenas de trilhas que revelam elementos naturais exóticos e surpreendentes, em razão dos quais sempre esteve associado ao místico e ao sobrenatural. Suas formações geológicas constituem um verdadeiro espetáculo visual, com composições areníticas oscilando entre 50 colorações, as quais datam de mais de 100 milhões de anos, e rochas cujos formatos sugerem a silueta de animais, pessoas e construções, como a Pedra do Cachorro, a do Elefante (próxima à reserva indígena) e a Serra das Torres. Na Vila do Catimbau, a Associação dos Guias disponibiliza profissionais aptos a acompanhar e orientar os visitantes durante o passeio.

Segundo pesquisadores da UFPE, os antigos habitantes do lugar eram grupos caçadores-coletores do Período Holoceno que não apresentavam domínio da cerâmica e moravam em cavernas (tanto é que, das cerca de 200 grutas e cavernas existentes no Vale, pelo menos 28 guardam vestígios de sepultamentos). Dos 23 sítios arqueológicos com grafismos rupestres já catalogados pelo IPHAN no Parque, o maior e mais importante é o Alcobaça, situado em um paredão rochoso com configuração de anfiteatro. Lá foram encontradas pinturas rupestres em um painel de 60m, ocupando uma área de 50m de extensão com largura variando entre 2 e 3m. Já a pedra da Concha apresenta um painel de 2,3m por 1,5m, albergando inscrições com figuras humanas, animais e desenhos geométricos em tons ocre. São imagens isoladas que não compõem cenas, com predominância da tradição Agreste. Acredita-se que foram utilizados nas pinturas pigmentos metálicos e não metálicos misturados a pigmentos orgânicos, como genipapo e urucum.

Cemitérios arqueológicos na Furna do Estrago

Escavada pelos arqueólogos da UNICAP, a Furna do Estrago, abrigo sob rocha localizado no Município de Brejo da Madre de Deus, é um dos mais importantes sítios arqueológicos do Brasil. Formado pelo desabamento de um grande bloco de rocha granítica no sopé da Serra da Boa Vista durante as glaciações, o abrigo foi preenchido por blocos de rocha e sedimentos soltos pelo intemperismo físico, transportados em violentas precipitações torrenciais. Constituído por um único salão de 125m² de área coberta, com abertura voltada para nordeste, o abrigo é bastante arejado, seco e iluminado, e diante dele se estende um patamar delimitado por grandes blocos de rocha granítica, alguns contendo arte rupestre. Da sucessiva utilização do sítio como habitação por grupos caçadores-coletores numa seqüência temporal de aproximadamente 10 mil anos, resultou uma estratigrafia em que predominam as lentes de fogueiras superpostas, formando pacotes de cinzas, e sedimentos finos, soltos, secos, de cor parda, contendo restos alimentares e toscos artefatos de pedra e osso.

Há cerca de 2 mil anos, a Furna passou a ser utilizada como cemitério. Os depósitos feitos pelo homem desde o início do Holoceno foram intensamente perturbados com a abertura de dezenas de fossas funerárias. Apenas uma área próxima do fundo do abrigo permaneceu intacta e foi tomada para estudos. Da ocupação do sítio como cemitério resgataram-se 83 esqueletos humanos encontrados em bom estado de conservação. As condições ambientais favoreceram a rápida desidratação da matéria orgânica e a preservação da pele, dos cabelos e do cérebro em alguns indivíduos, bem como do artesanato em palha utilizado no ritual funerário. É de notar a persistência de um padrão de sepultamento em que os corpos eram colocados na posição fletida (fetal), amarrados com cipós e embrulhados em esteiras de folhas de palmeira, compondo verdadeiros fardos funerários. Os recém-nascidos eram depositados em pequenos cestos ou em espatas de palmeiras e não levavam adornos, ao passo que os adultos estavam acompanhados de colares e alguns levavam flautas ósseas e tacapes.

Estudos de antropologia biológica realizados sobre esses esqueletos revelaram tratar-se de uma população homogeneamente braquicéfala, de estatura média-baixa, robusta, com estado de nutrição satisfatório e boa adaptação às condições ambientais. O acentuado desgaste plano dos dentes e a ocorrência de poucas cáries nesses indivíduos indicam uma alimentação à base de vegetais não cozidos, característica observada em grupos caçadores coletores. Esse grupo humano pré-histórico era portador de patologias como a espinha bífida oculta, atribuída ao consumo de batatas tóxicas, variação numérica das vértebras (presença de uma vértebra a mais no sacro e na região lombar), conseqüência de casamentos consangüíneos, osteofitose e artrose, além de fraturas freqüentes decorrentes de quedas sobre a bacia e os pés. Boa parte do material resgatado na Furna, bem como artefatos em cerâmica, fragmentos de pinturas rupestres e material lítico, encontram-se em exposição nos Museus Histórico do Brejo da Madre de Deus e de Arqueologia da UNICAP, no Recife.

Outras coleções

Há ainda duas importantes coleções arqueológicas no Estado. A primeira delas é a do Museu de História Natural do Ginásio Pernambucano, no Recife, organizado em 1858 pelo naturalista francês Luis Jacques Brunet, à época professor da Disciplina de História Natural no Ginásio, e que consiste em um total de 3.865 peças catalogadas nas áreas de Arqueologia, Botânica, Geologia e Zoologia, com a parte de Arqueologia Pré-histórica havendo sido descoberta pelo professor Armand François Laroche no município de Bom Jardim. Na Capital, também é possível visitar o Laboratório de Arqueologia da UFPE. Já no Interior, o destaque cabe ao Museu Carmelitano de História Natural, em Camocim de São Félix, fundado pelo frei Telésfero Machado do Carmo em 1963 e no qual se encontra uma infinidade de peças catalogadas em 15 setores, com destaque para os de Anatomia (corpo humano), Entomologia (insetos), Mineralogia (minerais), Paleontologia (fósseis), Petrologia (pedras), Taxidermia (animais empalhados) e Zoologia (animais).

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